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UM ANJO NO OLX

Quando o meu marido colocou à venda no OLX a sua moto MASH 250CC, modelo vintage, não fazia ideia do que essa venda iria acrescentar à minha vida.

Tenho a mania de estar atenta a todas as coisas do meu dia-a-dia. Creio que para tudo e em tudo há uma terceira linguagem, mais ou menos o mesmo princípio de que não existem acasos. Se há quem tenha duvidas eu não tenho, sei claramente que não existem acasos. Existe sim falta de tempo para observar e ler o que nos acontece.

Voltando à venda da MASH. O meu marido teve trabalho fora de Lisboa no dia em que ficou agendada a venda da mota na conservatória em Sintra e por isso fui eu fechar oficialmente o negócio. Combinei com o comprador o encontro no dia da venda, um homem com cerca de 33 anos, natural e residente no Alentejo, numa cidade quase pegada a Espanha. Confesso que estava com algum receio por quem pudesse aparecer. O encontro ficou marcado para Sete Rios, decidi ir buscá-lo, com o meu filho, ao terminal das camionetas. Às 11h30 como combinado, lá estava ele: Um homem com 1,75 bem constituído, face rosada e ar assustado. Trazia na mão um saco plástico branco com o capacete, referência que usou para que o identificasse. Assim que me viu, senti nele algum alívio e comentou de imediato com um sotaque:

“Ai Dona Ana isto é tanta confusão para mim, até tou tonto de tanto movimento… Sabe que eu vivo numa horta e não estou habituado a nada disto…”

De imediato percebi que havia motivos para o temer. O homem estava verdadeiramente assustado com a confusão da capital e tentei acalma-lo dizendo:

– Sabe que do outro lado da estrada temos o ZOO de Lisboa, há sempre aqui muitas crianças!

– Deve ser dos únicos sítios que conheço em Lisboa, vim cá em miúdo, com a escola, mas já não me recordo.

Entrou no carro. O meu filho estava comigo, no lugar do pendura o homem sentou-se no banco de trás.

Arrancámos e do espelho retrovisor conseguia observar a sua estranheza a tudo. Tentando confortá-lo falei dos músicos do meu projecto que eram todos alentejanos, dos meus sogros e da DELTA, para quem actuamos em 2019:

– Eu trabalho na Delta e o adoro aquela empresa, o Sr. Nabeiro é uma jóia de pessoa, é um homem como já não há, dá trabalho a toda a gente devia haver mais pessoas como ele.

Contei-lhe em pormenor a minha ida à delta, a visita à quinta das argamassas, ao azeite CampoMayor e fui percebendo que ficava mais calmo. Já na IC 19 perguntava-me:

– Ana e para voltar é pelo mesmo caminho?

– É mais ou menos – respondi – mas se colocar no GPS é muito fácil!

– Sabe que o meu telefone não está lá muito bom!… nem sei se tem isso.

Esta resposta foi o suficiente para perceber que o GPS não seria uma solução e comecei logo a pensar em reorganizar a minha agenda… o meu filho estranhamente não dizia nada, Continuamos a conversar e ele dizia:

– Sabe Ana que há pessoas más e agente tem de estar sempre atento e quando saímos do nosso canto temos de estar ainda mais atentos…

No meio do diálogo ía dizendo:

– Mas isto é tão confuso, meu deus do céu, eu não sabia viver aqui!

Aproximámo-nos de Mem Martins e disse-lhe que era melhor ir ver a mota primeiro, antes de ir à conservatória:

– Não é preciso Ana, eu vi o video que o seu marido enviou! Mas eu já estou perdido, já não sei onde estou…

Senti-me mais confortável em lhe mostrar a mota antes da compra dirigi-me para a garagem. percebia que a sua preocupação em se movimentar na cidade estava a aumentar. Chegamos à garagem onde estava a mota e quando a viu, os olhos brilhavam de alegria e dizia-me:

– É mesmo bonita, ai é tão linda e mesmo novinha, tá impecável… A minha mulher vai ficar contente… sair daqui vai ser a confusão!

O meu filho acompanhou-nos sempre num estranho silêncio. A alegria e a simplicidade deste homem comovia-me a cada instante. No caminho já tinha decidido que não poderia encerrar o processo na conservatória e para o descansar disse-lhe:

– Não se preocupe, vamos à conservatória e depois eu encaminho-o até à estrada do sul!

Na conservatória, já em Sintra, continuava a demonstrar estranheza e quando saímos comentou:

– O senhor estava mal disposto, se calhar não gosta do que faz… coitado!

De facto o funcionário não nos atendeu mal, mas também não demonstrou qualquer “empatia” seriamos apenas a marcação do meio-dia e meia, não há tempo para olhar ou sentir as pessoas. Confesso que a certa altura tive para lhe dizer “por favor não trate mal este homem porque ele já vem assustado”.

Saímos da conservatória em direcção à garagem para ir buscar a mota e pedi ao meu filho que fosse buscar a irmã, justificando-lhe:

– Eu não posso deixar este anjo no meio desta confusão filho!… Tenho de o encaminhar para sul.

Dirigi-me ao comprador e disse-lhe:

– Eu vou consigo até à entrada da ponte 25 de abril!

– Ai Ana, se faz isso por mim, não lhe vou dizer que não!

– Aproveito e dou um passeio, não é nada de especial!

Arrancámos e ele com uma condução fantástica veio sempre atrás de mim. A caminho, liguei para um dos músicos que trabalha comigo para que me indicasse o melhor caminho para ele ir pela nacional após a ponte 25 de fabril. Perto do IKEA da Amadora, parei num posto de abastecimento para que atestasse a mota, tinha de o deixar tranquilo e assegurei-lhe:

– Eu passo a ponte 25 de Abril consigo e você segue a partir daí

– Ana faz isso por mim? é um grande esticão!

– Não se preocupe, eu faço isto por mim, fico mais descansada se assim for!

Atestado o depósito, seguimos rumo à ponte 25 de Abril. Ele seguia eximiamente atrás de mim, sem vacilar. Parecia ter conduzido numa auto-estrada toda a vida. Agradeci por não haver transito na ponte, nem vento, o caminho estava desimpedido para que o conduzisse em maior segurança.

Logo a seguir à ponte, fiz sinal de pisca para a direita e com o braço de fora da janela indiquei-lhe que seguisse em frente rumo ao sul, à paz e à sua horta. Ele colocou-se lado a lado com o meu carro e em simultaneo com a mão, fizemos o mesmo gesto; “ligue me quando chegar”, “Eu ligo quando chegar”… O meu “anjo do OLX” tinha ainda 200Km pela frente. Vendo-o ao longe pedi que todas as forças do universo o acompanhassem, que fizessem desta viagem um bom momento de superação e coragem.

Voltei para Sintra e durante a viagem as lágrimas corriam me pela cara sem que as conseguisse parar. Tinha uma sensação de plenitude como se tivesse conseguido chegar à essencia das coisas. Como se aquele anjo tivesse refletido o melhor de mim, como se cada minuto daquela manhã me tivesse feito regressar a casa, à simplicidade. Não me saía da cabeça a alegria transbordada no olhar daquele homem, o medo do desconhecido e o alivio por se sentir protegido.

Perto das 17 horas recebi uma mensagem: “Já cheguei, muito obrigado por tudo, ainda há pessoas boas e a Ana é uma delas”…

Respondi-lhe:

“Somos reflexo um dos outros, há pessoas boas de Sintra a Badajoz, só precisamos de as encontrar”.

Se em tempos refilei com o meu marido por ter comprado a mota, hoje dou graças a deus por essa birra de homem. Fiquei com a sensação que ele a comprou para que este homem viesse à minha vida, relembrar-me que a nossa essência pode nunca ser corrompida, que tanto somos bons na cidade como no campo, que o que define a relação que temos com o outro é o respeito à sua experiência, que quando olhamos com amor criamos paz, quando olhamos com arrogância criamos “bullys” e acima de tudo, com todas as políticas de aviso no perigo de nos relacionarmos, os anjos existem em todo o lado, até no OLX…

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